terça-feira, 11 de março de 2008

A hora do Bastião

De olhos bem abertos, pregados na porta, em vão esperava quem lhe alegrasse os últimos instantes. Ainda outro dia entregara ao doutor o papel amarrotado com telefones de parentes. O médino não encontrar ninguém e pedira à enfermeira que tentasse outras vezes. Mas o doutor escondeu o olhar ante o morimbundo, pois, embora acostumado à morte, ainda sofria diante da solidão.
Os olhos do velho fixavam-se na porta.
A enfermeira entra, contempla-o com ternura. O velho estende o braço descarnado para o soro. A moça sorri, carinhosa, passa a mão quente e macia naquele rosto cansado.
- Eles virão, com certeza.
- Vêm mesmo? - Brilham os olhos encravados na pele escura.
Rememora coisas. Preocupa-se em não misturar idéias, os filhos reclamam que está caduco:
- Mentira dele! Usam isso para não me escutarem mais. - Alteia a voz. Tosse.
Depois, conforma-se ao quarto, outra vez.
- O bom desses quartos de hospital é que a gente ensaia o sono eterno.
Cessa o barulho das visit\s no corredor.
- Moça, nasci quando libertaram os negors. Vivi a luta e a miséria da minha raça - A respiração obriga-o a pausas frequentes. Ela espera. - Muitos filhos e netos e bisnetos, moça, e hoje ninguém veio outra vez. - O velho olha para o chão, para o canto. A enfermeira enxuga-lhe as lágrimas da face enrugada. Algumas vezes ele cansa, dorme.
Durante dias desenrola lembranças em doses homeopáticas.
Gosta quando a moça diz ser ele o melhor paciente. Ela, um anjo velando. Pena os filhos, sempre tão ocupados. Gostariam de conhecê-la, diz-lhe.
- Mas conta outra história, vovô - Ela acomoda-se aos pés do velho, segurando a mão flácida.
E ele narra as dificuldades para sobreviver no início do século, quando tratavam, mesmo os libertos, como animais. De dia, no cafezal, ganhavam apenas pra comida. À noite, na senzala, cantavam e dançavam ao som dos atabaques. Ainda ouve o eco da cantoria. Sorri. Os brancos temiam as rezas da gente. Depois foram chegando os estrangeiros, tirando o trabalho dos negros.
Por essa época nasceu Raimundo, que aprenderia a ler, o Pedro, morto numa greve, e mais três ou quatro dos seus doze filhos. Vida miserável. A febre amarela levara outros dois ao túmulo, e a Força Expedicionária, o Nico, o mais novo. Bem avisei que não fosse.
Depois da pausa, segue pesaroso.
- Sem falar de Tiana, tadinha, a mais bonita da fazenda, de casamento marcado com Bentinho. Mas o sinhô-moço desgraçou a menina, na própria maloca, enquanto trabalhávamos fora. Bentinho não quis mais Tiana barriguda. Ela então pego a faca da cozinha, a de ponta e muito fio, esburacou a barriga até sair o sangue e o filho. Encontrei Tiana morta, quase enlouqueci.
A enfermeira repassa o lenço sobre aquela face dolorida. Afaga a mão do velho e a retém entre as suas.
- Esse braço era forte, moça.
Os olhos fecham-se. Por dentro, dói. Pára. Ela aguarda. O homem recompõe as forças.
- Com este braço e a velha adaga da revolução de 30,encontrei o rapaz num boteco. Ao ver a lâmina, chorou como um bezerro desmamado e pediu perdão. Pensei apenas em Tiana. Noutro dia, fala dos filhos quei o encheram de netos e estes, como ratos, duplicaram-se em bisnetos e tataranetos. Gerou doutores, advogados, comerciantes, operários e, rindo, até alguns marginais.
- A gente faz tudo pelos filhos, moça. Mas mal crescem, seguem o vento. - O fio de alegria desfaz-se outra vez - Na primeira oportunidade me jogaram no asili. Lá, esqueci os nomes, aniversários, filhos de quem. Tudo se pergunta de novo. Eles cansam das mesmas respostas, vão embora depressa, não voltam mais.
E, após recuperar o fôlego, segue - A gente adoece e morre em vida, moça. Sinto saudades de todos, mas apenas os mortos merecem lembrança. Estes parecem melhores. Não tem culpa por não virem. Breve os encontrarei.
- Vô, eu telefono mais uma vez, se necessário busco um deles à força. Quer? - A enfermeira, brinca - Espera, já volto. Tá?
- Não, filha. - Ele tosse. A respiração curta impede um esforço maior. Sua mão tenta reter a jovem, que sai com a lista de telefones.
Súbito, alguém bate à porta. Com grande esforço, o ancião volta o olhar. Dói-lhe o peito. Tenta falar. Mal esboça um sorriso.
A enfermeira retorna. Estranha o perfume silvestre e as pétalas espalhadas pelo chão. Ainda ouve um canto negro vindo de longe. Pela janela aberta, o céu luminoso rompe as cortinas esvoaçantes. Sobre a cama, com o rosto agora sereno, de olhos abertos e fixos na porta, o velho sorria à mais esperada das visitas.


2 comentários:

Anônimo disse...

Nossa... Que triste! Me lembrou aquele livro "Enquanto a noite não chega!"!

;*

Anônimo disse...

Aliás, muito bom o livro!
E o teu texto também!